atravessou a ponte a pé. lá embaixo o rio pinheiros e toda sua sujeira. do outro lado seu destino. queria rever o lugar onde a trombou pela primeira vez. trombou literalmente. ela, vivaz, descia a ponte de bicicleta. ele, desatento, olhava a paisagem. quando a ouviu gritando biii biii já era tarde. abriu os olhos e lá estava ela, linda, expressão de preocupação. ele rindo disse que ia a processar. ele gostou dela. ela gostou dele. encontraram-se mais vezes. andavam de bicicleta pela cidade, visitavam parques, qualquer lugar era pretexto para se verem. um antigo amor da garota voltou de viagem. a relação entre os dois ficou estranha. os passeios diminuiram. ele voltou a andar a pé. um antigo amor do garoto reapareceu (na verdade ele a procurou). não se reencontraram mais. às vezes ele atravessa a ponte, esperando ser atropelado novamente.
ela chegou no bar, apressada, tentando controlar seu corpo para que não suasse. ela sempre tentava o impossível. no reflexo do vidro ajeitou seus cabelos. procurou nos rostos algum traço conhecido. ele não havia chegado. olhou o relógio do celular. conferiu o horário no relógio do bar. meia hora se passou e ele ainda não havia chegado. tirou o brilho da bolsa e passou na boca. dispensou alguns homens que se aproximaram com um olhar distante, olhar de quem espera alguém. viu o vidro ser molhado pela chuva que iniciava. estudou novamente os rostos. estranhos, duros, nada amigáveis. não devia estar ali sozinha. outra meia hora passou. o celular tocou. o identificador mostrou que era ele. atendeu. guardou o celular. passou os olhos novamente pelo bar. algo em sua expressão devia espantar os homens. nenhum outro se aproximou. o vidro do bar já era só chuva. saiu do bar e subiu a rua pelo asfalto dourado. em dias de chuva os postes transformam o asfalto em ouro negro.
quando levantou o sol já estava caindo. sensação estranha. olhou para o lado e a única coisa que havia restado dela era o lençol amassado, de uma forma que lembrava as formas dela. foi até a janela e viu a cidade silhuetada, o céu vermelho. acendeu um cigarro, como se tivesse sido acendido pelo fim de tarde. Observou as formas da fumaça. uma espiral caótica, porém harmônica. não situava os acontecimentos do dia anterior de maneira coerente. a linha do tempo toda bagunçada. procurou pela casa, mas ela não deixou nenhum sinal, nenhuma pista, nada que pudesse ajudá-lo a achá-la. teria que esperar até semana que vem, como haviam combinado. mesmo bat-horário, mesmo bat-local, risadas em cima de piada tão velha. seria uma semana longa.
Cheguei cinco minutos atrasado, após ter andado contra a noite mais fria do ano. Toquei a campainha e ouvi a sua voz soando metálica, como num rádio de pilha. Ela veio rápido, acompanhada pelos latidos de seu cachorro. Usava um cachecol colorido que parecia brilhar no escuro. Brinquei que ia embora e ela disse não senhor, abrindo os braços, me apertando em si mesma. Entramos e ela me ofereceu doces e café. Come vai, dúvido que não vai gostar. Aceitei apenas o café e fomos a cozinha. Sentei-me numa pequena escada e fiquei a observando preparar o café. Movia-se com leveza pela cozinha. As prateleiras altas demais para ela, baixinha. Eu não conseguia parar de sorrir. Impossível conter essa alegria objetiva que se mostra através de um ato tão simples. Como quer seu café? Muito açúcar? Me fala em porcentagem. Mas sempre nas perguntas incluindo seu gosto pessoal. O que eu podia fazer se não dizer a ela que fizesse ao seu gosto? Subia tanto mais naquela fumaça. O calor do café irradiando meu sorriso. Tive a falsa impressão de que muito mais era oferecido naquele gesto. O telefone tocou: a carona havia chegado. Voltamos para a noite fria. O gosto do café ainda na boca.